Me escapa
me foge
escorre
por mais força que se faça
por mais que se aperte os dedos contra a palma
a alma

Tenho muito
e quanto mais tenho
menos a tenho
a que escore entre os dedos e a palma
a alma

Tantos lugares fui
mais que todos em outras eras
e isso
ao invés de me curar
me fez matar
aquela que se esvai
entre os dedos e a palma
a alma

Do que adianta
ganhar o mundo?
Se o mundo
não vale mais
do que a alma
que escapa
foge
escorre por entre os dedos e a palma

Salva-me
pois prefiro o mundo
a minh`alma
Salva-me
porque sozinho já vou perecendo
e vai escorrendo
entre os dedos
os dedos e a palma
aquela
pérola
digna de sua morte
minha alma
Salva-me
Salva-me
Salva-me
Alva-me
Alma-me
Ama-me






Olhou no espelho
era uma manhã
ou eram as luzes
olhou no espelho
viu pelo vidro
o banheiro

Viu alguém mais velho
surrado pela vida
não soube quem era
olhou no espelho
e viu pelo vidro
o desespero

Gritou
e os ecos o ensurdeceram
afirmou que era foda
sem medos
perfeito
olhou no espelho
e não viu nada
além do espelho

Quebrou
e os cacos o cortaram
e o mosaico criado no chão
era de sangue vermelho
haviam milhares de nada
espalhados pelo chão do banheiro

Chorou
um choro comovente
daqueles que só se chora em enterros
olhou para onde ficava o espelho
e viu na parede
um nada eterno

Sem ele mesmo
não sabia o que era
mesmo tendo tudo
o que se procura na terra

Sem saber o que era
procurava a morte
que se esquivava
como quem se esquiva da morte

Oh fim!
O que poderia fazer para que venhas?
lance teus dardos sobre mim
não te detenhas!

Antes que me esfacele por inteiro
e seja assim como os cacos
desse espelho
que é meu reflexo
junto ao sangue no chão do banheiro

Não fujas de mim
meu amor derradeiro
me encontre lá fora
no sol
no terreiro
nos vales profundos
no alteiro

Ou me devolva
ó deus
aquilo que está em seus olhos
e que procuro no espelho
assim quem sabe
eu possa ser
e novamente ser verdadeiro
pois procuro e não vejo
aquilo que outrora
era para mim como um beijo:
•••eu mesmo•••










Agosto
agosto
seu rosto
agora impresso dentro de mim
escrevo
não quero
preciso
as palavras aliviam
elas criam
mundos pra mim

Agosto
agosto
me trouxe um dia aqui
e comigo vieram
tristezas
alegrias
e o que mais pudesse vir

Agosto
agosto
quem sabe se foi em agosto
que realmente nasci?

Era meia noite
de dores de parto
sofria por mim

E viu-se indo
mas ainda lutava
para me parir
e de amor
a morte
não era nada
porque mais que a si
me queria ali

Agosto
seu rosto
não me lembro se vi
mas o seu abraço
sua voz
um laço
que sempre me acalma
quando perto de ti

Agosto
agosto
quantos agostos
eu trago hoje no rosto?
E o documento
que trago no bolso
não diz a verdade
de quantos agostos vivi

Agosto
agosto
não acabe nunca
fique por um século
não tenha fim

Porque se tu vais
vem sempre o desgosto
o gosto do mosto
o cheiro do mofo
e a vontade inebriante de partir

Agosto
agosto
se estenda
como logos
para que eu sempre seja a criança
a que dela é o reino
a que eu sempre quiz








Estou
em estado de luto constante
é como se um tanque
tivesse passado por cima de mim

E há tempos
a sinto vir
é como se aqui
fosse o lugar mais perto do fim

O fim
Ah! O fim!
Quando?
Como?
Meu coração
tem uma indagação
um pergunta
que ainda não foi perguntada
com uma palavra
que ainda não foi decifrada

Palavras são enigmas do coração decifrados

As palavras existem antes
antes que pela primeira vez fossem ditas
escritas
elas já pairavam em nós
muito antes

A angústia que me habita
é de uma palavra que ainda não foi dita

É como amar alguém que ainda não se conheceu
Ou chorar de saudade de um estranho

É como ter conquistado todas as coisas
e ficar insone com a falta de algo que não se sabe

Como procurar por algo que não se perdeu
ou a nostalgia de algo que não se viveu

Eu ainda não encontrei o que procuro
porque não sei o que procuro
e suspeito, que a procura, é por fim
o que eu tanto procurava

E talvez essa palavra
seja resultado
do meu mais suave e sereno silêncio
















Pela manhã
quando acordares
logo cedo
ao sentir a claridade

Quando ainda os pensamentos são incertos
e os sonhos se misturam com a realidade

E a consciência ainda não se alinhou

Antes que as más notícias te alcancem
e a vontade da cama
e a necessidade de se levantar
forem a única questão seria a se resolver

Antes
antes de se dar conta que você cresceu
quando ainda em estado infante
onde as obrigações não te obrigam

Se houver alguém ao seu lado para contemplar
antes de qualquer palavra se formar na mente
contemple
ame
assim como eras
quando eras antes da memória

Um amor materno
que não se sabe
que só sente a necessidade
de amar
de total rendição
frágil

Pela manhã
quando o sol brilha mas ainda não queima
e as pequenas gotas de orvalho o resistem
e o frio da noite é uma lembrança

Quando a liberdade é sólida
e não existe senhores a quem obedecer
quando tudo anuncia o gênese
e os filhotes dos pássaros
ainda se aninham nas asas da mãe

Pela manhã
quando acordares
volta todo seu ser
para Ele
e sente
a graça
deixa ela inundar seu ser
em gratidão
sinta o ar preencher cada espaço dos pulmões
antes de tudo
sinta
e sinta apenas
Ele
está em tudo como dádiva
Ele está
Ai
No agora
Ele está
Ele
Ele é amor
O amor
Ele é





O chão
Suplantado
abolido

Suspensão
dos sentidos
sentimentos
de toda razão

Parte da força
para continuar
estava em não pensar

Mas agora
o pensamento me engoliu
e me pariu
eu sou ele
e ele sou eu

Você é agora
algo acima
um pensamento infinito
sem pausas
opressor
angustiante

Não há chão

E o que importa se há
apoios ou não?
Só há queda se não há chão

Agora tudo
me parece um passado eterno
um enterro sem corpo
um choro
sem causa
mas ainda assim o mais triste choro

Ouço vozes
sinto mãos em meus ombros
alguém distante caçoa
e nada disso importa

Algo em mim parece gostar
aquele algo que sempre me dizia
que nada nunca fez sentido
e só existe isso agora
meu pranto e eu
pois até quando não choro
estou chorando

Eu queria tudo de volta
mesmo que nada agora faça sentido

Eu queria uma chance
eu não suporto a ideia de viver sem você
é pesado demais
e por tanto peso
se foi o chão em ruínas

E quem é você que dava sentido à vida
senão minha própria projeção?

Foi você um emprego
a família
um amor?
Um sonho
um plano
um filho?
Foi você...
e não foi
foi tudo isso
e não foi
foi auto-engano
você foi eu
e eu, pelo visto, não fui nada

Todos nós no íntimo sabemos
que não há sentido para a vida
que todos os dias raiam e nascem
sem objetivo algum
que não seja um repetir incessante
massacrante, que não leva a nada
e a lugar nenhum

Olhamos para frente
e o que vemos?
Poeira!
Nossas conquistas?
Nosso dinheiro?
Nossas experiências?
Nosso vazio!

Os anos passam
e até o mais conquistador dos homens
se sente um fracassado
não há recompensas
há sempre mais falhas
mais desacertos

A vida é um construir sobre as nuvens
Um desejo angustiante de reconhecimento
Um show ininterrupto de falsidades

Um atropelar progressivo
em que não se respeita nada
nem ninguém
em que se elege o que
e quem amar
para agrado próprio

A vida é um ato egoísta
egocentrada
num ensimesmamento
que produz um vácuo

Até que o chão é suspenso
ou enfim sentimos que por toda a vida
só estávamos caindo

Ai, e somente ai
talvez haja esperança

O dia da perplexidade
chega para todos
dia sim, dia não
anos à frente
não importa
ele chega
e bem aventurados aqueles que caiem
e no fim encontram
nessa queda em si mesmo
os outros
todos agora no mesmo chão, real
só ai começa verdadeiramente a saga do amor
pois a vida
a vida mesmo
tem um único objetivo
um único sentido
uma única razão de ser
o amor
o amor somente
e somente o amor






Eu penso sobre o meu pensamento
Eu penso
e quando venço
há um lamento
aqui dentro

A razão
Tenta encontrar equilíbrio
e corre grande perigo
A razão
desconhece a razão
a razão do meu coração

Eu penso
penso sobre o que eu sinto
e pra mim minto
achando que o que sinto
e o que penso
não podem
jamais
entrar em consenso

Meu corpo fala
nunca se cala
mesmo quando paralisa
ele me avisa
mesmo quando se abala
ele fala

E eu penso
penso que sei o que sinto
e sinto por não concordar comigo
os sussurros do ser no ouvido
que chamam de intuição
amiga próxima do coração

E eu vivo
como quem joga consigo
sou amigo
sou inimigo
de um jogo que não quero jogar
então penso
que o meu pensamento
é um fruto como que proibido
resultado de anos perdidos
que insisto em encontrar
e encontro
na síntese do ser desvalido
que perde e acha abrigo
em si próprio
e em outro lugar

Eu não sou o meu pensamento
nem eterno nem momento
mas também não sou o que sinto
nem a verdade, nem o que finjo
não sou só mente
nem corpo
nem só coração
sou algo resultado de tudo
ou que olha pra tudo
nem razão
nem intuição
sou algo que ainda busco
mas carece de explicação








Estou decepcionado!
Me empurraram sem me perguntar
Para um dos lados

E eu que até me achava equivocado
Fui sendo obrigado
a vestir as roupas
que vestem um dos lados

Me vi proibido de gostar do que gosto
e censurado por postar o que posto
Sim! Censurado!
Exatamente como do outro lado

O mundo anda embriagado
não percebe, que de fato
não existe lados
existe apenas "em cima" e "embaixo"

Lá em cima estão os deuses
dos quais desconheço a face
aqui embaixo estamos nós
refluxo de sua catarse

Lá em cima os que tem nome
aqueles que são adorados
Aqui embaixo nós
que fomos colocados de lado

Aqui embaixo sobraram, pra gente, os lados
Num doentio jogo
dos deuses
o jogar dos dados

Se dos deuses desconheço o nome
para nós que somos números
sobrou a fome

Aqui embaixo a gente se empurra
em filas
de todos os lados nos resta a latrina

Os deuses não brigam
só brincam
e se morrem
não é como nossa morte
nossa sempre morte severa, severina







O mês mais curto do ano
Num loop infinito-sem-fim
28 deve ser o número da eternidade
Dessa cruel eternidade humana

Meu espírito
Ainda não discerniu
Rejeita
Não quer
Repulsa

A ganância
A lama
O mata leão

O humano está extinto
Somos outra coisa

O humano sempre foi mau
Mas transcendemos

Não há quem faça o bem
Nenhum sequer
E isso já não assusta

Acordei cedo
Olhei o calendário
Ainda era fevereiro

Fevereiro é um estado de espírito
Sem espírito
Amanhã será dia 02 de março
E fevereiro reinará sobre nós

Estamos presos
E tudo que vemos
É um reflexo nítido
Imagem e semelhança do que nos tornamos

Esperei fevereiro acabar
Para escrever
Não queria me assustar
Dia 28 chegaria ao fim
E as tragédias acabariam
Mas acordei
E comemoravam a morte de uma criança
Fevereiro venceu
E nós?
Nós já não somos





Não foi fácil chegar até aqui
Aqui é um lugar que não sei bem onde é
Janeiro
Às vezes me sinto fora
E fora também é um lugar que não sei definir bem

Quando dezembro acaba
muito muda
e nada muda
talvez o calor aumente
aqui nos trópicos
onde a vida parece não ter tanta importância assim

Existem vidas que valem mais que outras
mesmo sabendo que nenhuma vida vale mais que outra

Eu me detenho em pensamentos sobre guerras
sobre a inutilidade das guerras
e não consigo deixar de brigar com pessoas que amo

Uma das grandes tragédias de se tornar consciente
é conseguir enxergar os próprios erros
e não conseguir corrigir os próprios erros

Existe mais pureza em quem defende seus erros sem percebe-los

Eu carrego uma tristeza que nunca me abandonou
Às vezes ela se esconde
Se esconde tão bem
que penso a ter perdido
mas ela espreita pelas frestas do meu ser
esperando o momento do erro
pra se mostrar viva e nutrida
sempre mais forte do que antes

Carrego uma felicidade irredutível
irmã mais nova daquela tristeza
que vive por tentar se mostrar
mais frágil que a outra
ela tenta se revelar
a todo momento
ela tem me mantido vivo

A minha tristeza se parece mais comigo
suspeito que sejamos um

A felicidade me foi dada
é um implante

Não foi fácil chegar até aqui

Mas ainda é Janeiro
talvez isso tudo mude

Há sempre mais força naquilo que é frágil

Há sempre mais esperança em algo que não parta de mim

Ainda é Janeiro
e o tempo
esse cruel amigo
destruirá o começo
e fará as coisas se aplainarem
e correrá de forma mais suave
sem a pressão dos recomeços
sem a cobrança das mudanças necessárias
fará tudo ser meio
até que a alegria desesperada do final se aproxime mais uma vez

Não foi fácil chegar até aqui
mas ainda é Janeiro