Que me perpassa
Mesmo que nunca tenha saído de mim
Agora
Dói mais
Eu me lembro
Como se fosse outro dia
(Como se nunca houvesse acontecido)
Da ignorância que me iludia
E também me fazia
Ser cruel e sorridente
Um fiel
Um bom crente
Me perguntaram
Ontem mesmo
(E todos os dias)
Se eu daria meu salário
(Porque é isso que importa
Trabalho-dinheiro-salário)
Para salvar uma criança yanomami
E quem não daria?
O triste
O patético
A ignomínia
Foi ter ouvido que isso é hipocrisia
Salvação há
Muitas
Mas não para nós
Teria dito Kafka
Hoje eu entendo
Sinto escorrer
Por minha garganta
O sangue de cada criança
Turva meus olhos
Espessa minhas mãos
Já não posso segurar mais nada
Coagula por todo meu corpo
O sangue de cada criança
Ouço suas vozes
Sinto sua respiração
Fraca
Raquítica
Dentro dos meus pulmões
Sussurra em meus ouvidos
Sua frágil e tuberculosa respiração
E dilacera o que resta
Do meu coração
Não há choro
Nem pranto
Nem luto
Capaz de amenizar
A culpa
A desonra
O pecado
De as matar
E há quem ainda argumente
Desses, não resta muita
Ou quase nada
Do que um dia
Foi chamado de humanidade
Nos resta
Do desmatamento
A cidade
Retrato
Da perversa e cruel
Sociedade
Asfalto
Ouro e Asfalto
Esse foi
Da modernidade
Nosso grande salto
Ouro
Carros
Celular
Internet
IA
E asfalto
Nosso legado
Concreto e Asfalto
Chips
Calor
Displays
E assaltos
Armas
Polícia
Muros
Salários
Borracha
Plástico
E asfalto
No lugar do verde
Asfalto
No lugar do rio
Asfalto
No lugar de tudo asfalto
E no lugar da gente...
Ao invés de alma
Com uma IA, um bate-papo
Eu trocaria tudo
Pelo que chamam de nada
E mesmo que eu ore
Que reze ou clame
Nada disso vale mais
Que uma vida Yanomami